Sobre memórias que se tornam lições de vida

Este texto está pronto há aproximadamente 8 anos. O escrevi em 4 de outubro de 2015, quando ainda morava em Bruxelas e convivia cada vez mais com pessoas incríveis de diferentes lugares do mundo. Me lembro de derramar lágrimas em cada frase escrita, cada lembrança vivida, elas ainda eram muito recentes na minha mente. Escrevi e não tive coragem de publicar. Achei que não estava pronto, que precisava ser lapidado para poder expressar tudo aquilo que eu queria. Ledo engano, isso nunca será possível! Por mais que eu tente, por mais que eu revise todas as palavras, mesmo adicionando fotos, nada trará de volta aquela incrível experiência que foi vivida. 

Agora, após ter tido outras histórias, percebo que talvez seja a hora de compartilhar o que se passou naquela tarde. Vocês verão mais na frente do texto que eu não quis contar a história pessoal da minha protagonista, Elizabeth, e continuo com essa ideia. Seus sofrimentos e privações não precisam ser expostos aqui, não é esse o objetivo, só peço que entendam, que o corpo humano é capaz de suportar dores inimagináveis, mas a mente nem sempre suporta a mesma pressão. Não tenho mais notícias de Elizabeth, sei o que aconteceu com ela, se está viva, se continua o tratamento, se está bem. Eu só sei que sua vida mudou a minha e é isso que eu quis compartilhar aqui. 

Neste post, quero compartilhar o grande presente que tive ao viajar com minha mãe belga-francesa, Brigitte, e sua amiga nigeriana, Elizabeth, à Louvain-la-neuve. Aceitei acompanhá-las nesta viagem a fim de conhecer uma nova cidade da Bélgica e aproveitar a oportunidade de apreciar uma exposição de artes produzidas apenas por mulheres, porém ela se tornou para mim muito mais que uma simples visita.

Tudo começa com Elizabeth, que como muitas outras pessoas que venho conhecendo desde que cheguei aqui, saiu de seu país em busca de uma vida melhor. Não uma vida economicamente melhor, mas simples uma vida. Foi a necessidade de viver que a levou a sair de seu país natal e se refugiar em Bruxelas. Sim, esta é a realidade de muitos refugiados, fugir para permanecer vivo. Não me sinto a vontade de contar sua história, sinto que as pessoas já passam por muitos problemas e que seus medos e tristezas não precisam ser amplamente compartilhados. O que importa é que esta mulher viveu e vive traumas terríveis derivados por tudo aquilo que passou e que com a ajuda de pessoas como Brigitte ela consegue encontrar forças para seguir em frente.

Logo cedo de manhã, nos três nos preparamos e viajamos de carro até Louvain-la-neuve. Passamos o dia inteiro conversando sobre artes e a capacidade das pessoas de colocar seus sentimentos nas pinturas e esculturas que produzem. Conversamos sobre isso por que Elizabeth descobriu em si o dom para a arte. Ela faz esculturas incrivelmente belas e começou um quadro ainda mais lindo.

Uma de suas esculturas, que estava em exposição, se chama The bleeding lion. Enquanto tentava me explicar sua inspiração para criar sua arte ela me disse que havia escolhido o leão por ser um animal universalmente conhecido como o mais forte e temido da selva e que quase nunca o vemos como frágil. Porém, este leão não era esbelto, forte ou bonito, era triste e estava machucado, ele sangrava por causa de todas as feridas que a vida havia lhe causado. Na minha concepção e talvez na de Elizabeth também, observando o que ela me contou durante todo o dia, seu leão havia perdido toda sua essência sua força. Era um leão sem esperança! Ela me disse mais tarde, naquele mesmo dia, que sua escultura representava todas as dores que vivemos, todo o sofrimento que passamos e que se até o rei da selva pode sangrar, nós também podemos.  

Pensando em tudo o que Elizabeth me disse e em tudo o que descobri de sua vida, conversando com Brigitte, me pergunto neste momento como nós seres humanos podemos ser tão fortes e tão frágeis ao mesmo tempo? Como conseguimos guardar em nós tanta dor e como conseguimos ser capazes de provocar tanta dor? 

Elizabeth transparecia dor em seu olhar e quando conversamos sobre sua nova pintura eu consegui entender que isso era o que ela realmente sentia, dor e desesperança. Eu tentei dizer a ela durante todo o dia que nós temos a capacidade de trabalhar nossos sentimentos interiores e tentar superar os obstáculos que aparecem em nossa vida. Porém, como alguém que passou por tudo o que ela passou consegue entender isso? Com que direito eu tenho de falar sobre superar a dor se apenas o simples fato de olhar em seus olhos me faz perceber que eu não conheço o real significado da dor e do sofrimento?

Ela não chegará a ver esse texto, seja por ser em uma língua que ela não conhece ou pelo simples fato de que provavelmente ele não será publicado. Porém, se eu pudesse eu gostaria de dizer a Elizabeth que ela me ensinou muito hoje. Que eu realmente me sinto extremamente grata de ter conhecido ela. Sei que sua dor não vai passar. Sei que ela viverá para sempre com esses sentimentos dentro de seu coração, mas espero que ela consiga encontrar em sua arte um caminho e exteriorizar sua dor, que ela consiga amenizar seus sentimentos colocando-os em seus quadros e mostrando ao mundo como o ser humano pode ser tão forte e frágil. Como as atitudes de alguns influenciam para sempre a vida de outros. 

Com isso me vem a seguinte pergunta: como nós, seres que nos dizemos humanos podemos ser capazes de suportar grandes cargas, podemos ser capazes de criar tantas coisas grandiosas e mesmo assim, alguns de nós escolhem destruir o que de mais valiosos temos, a vida?

A vida as vezes nos presenteia com coisas incríveis e inexplicáveis. Hoje ganhei um destes presentes! Graças a Brigitte e Simon, meus pais de outro país, pude conhecer um pouco da história de pessoas fantásticas que viveram e continuam vivendo momentos difíceis, mas que não param de lutar na esperança de um futuro melhor. 

http://www.tourisme-olln.be/fr/les-couleurs-des-femmes-oiseaux.html?cmp_id=29&news_id=19496&vID=82 (este link está desativado, porém como faz parte do texto original deixarei registrado. Ele era da exposição que visitamos na qual estava a obra de Elizabeth). 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Destrua este diário: 40º desafio

Destrua este diário: 11º desafio

Destrua este diário: 32º desafio.